"Os produtos descartados por essa nova extraterritorialidade, por meio de conexões dos espaços urbanos privilegiados, habitados ou utilizados por uma elite que pode se dizer global, são os espaços abandonados e desmembrados - aqueles que Michael Schwarzer chama de "zonas fantasma", nas quais "os pesadelos substituem os sonhos, e perigo e violência são mais comuns que em outros lugares". 1 Para tornar a distância intransponível, e escapar do perigo de perder ou de contaminar sua pureza local, pode ser útil reduzir a zero a tolerância e expulsar os sem-teto de lugares nos quais eles poderiam não apenas viver, mas também se fazer notar de modo invasivo e incômodo, empurrando-as para esses espaços marginais, off-limits, nos quais não podem viver nem se fazer ver.
(...)
O quadro que emerge dessa descrição é o de dois mundos-de-vida separados, segregados. Mas só o segundo é territorialmente circunscrito e, portanto, compreensível por meio de conceitos clássicos. Já os que vivem no primeiro dos dois mundos-de-vida - embora se encontrem, exatamente como os outros, “no local” – não são “daquele local”: não o são idealmente, com certeza, mas muitas vezes (todas as vezes que quiserem) também não o são fisicamente.
As pessoas da “primeira fila” não se identificam com o lugar onde moram, à medida que seus interesses estão (ou melhor, flutuam) em outros locais. Pode-se supor que não adquiriram pela cidade em que moram nenhum interesse, a não ser dos seguintes: ser deixadas em paz, livres para se dedicar completamente aos próprios entretenimentos e para garantir os serviços indispensáveis (não importa como sejam definidos) às necessidades e confortos de sua vida cotidiana. A gente da cidade não se identifica com a terra que a alimenta, com a fonte de sua riqueza ou com uma área sob a sua guarda, atenção ou responsabilidade, como acontecia com os industriais de idéias e bens de consumo do passado. Eles não estão interessados, portanto, nos negócios de “sua” cidade: ela não passa de um lugar como outro e como todos, pequeno e insignificante, quando visto da posição privilegiada do ciberespaço, sua verdadeira – embora virtual – morada.
O mundo-de-vida dos outros, dos cidadãos da "última fila", é exatamente o contrário. Em geral, para defini-lo, diz-se que está fora das redes mundiais de comunicação com as quais as pessoas da primeira fila vivem conectadas e com as quais sintonizam suas próprias vidas. Os cidadãos da última fila estão "condenados a permanecer no lugar". Portanto, espera-se que sua atenção - cheia de insatisfações, sonhos e esperanças - dirija-se inteiramente para as "questões locais". Para eles, é dentro da cidade em que moram que se declara e se combate a luta - às vezes vencida, mas com maior freqüência perdida - para sobreviver e conquistar um lugar decente no mundo. "
Confiança e medo na cidade (pg 26-7) Zygmunt Bauman
Nenhum comentário:
Postar um comentário